Guia para iniciantes, sem spoilers, para entender o essencial da série.
Identificar, para um personagem como Martin Mystère (arqueólogo, estudioso, divulgador, onisciente e especialista em todos os mistérios que a ciência não leva a sério, tanto que é apelidado de “Detetive do Impossível”), um número limitado de histórias “essenciais” para iniciantes exigiu uma abordagem única.
E a razão é simples: a série BVTM teve múltiplas evoluções que não só afetaram a caracterização dos personagens, mas também a sensibilidade com que os temas recorrentes foram abordados ao longo do tempo. Temas que, entre outras coisas, muitas vezes se entrelaçaram, enquanto no fundo das histórias você pode ver as mudanças sociais, políticas, tecnológicas e econômicas que ocorreram ao longo de décadas (os eventos ocorrem no “presente” dos leitores desde 1982).
Portanto, optei por identificar doze temas ideais com os quais construí duas seleções paralelas (para um total de 24 episódios): os “Clássicos”, ou seja, episódios publicados nos primeiros dez anos da série (a fase “mítica” que marcou o coração dos leitores históricos), e os “Desenvolvimentos” das décadas seguintes. Os spoilers que poderiam estragar o prazer da primeira leitura foram deixados de lado da discussão a seguir, exceto, claro, aqueles estritamente necessários para poder dar conta de como a série e os personagens mudaram ao longo do tempo. Algumas (ou muitas) das situações abordadas aqui ainda nem aconteceram no Brasil, mas isso não irá estragar o prazer da leitura!
1 – Os Homens de Preto
Os obscurantistas “Homens de Preto” foram os primeiros adversários enfrentados por Martin Mystère: uma organização misteriosa espalhada globalmente, cujo objetivo é destruir tudo que poderia causar um “choque cultural” (desde provas da existência de alienígenas até evidências de civilizações extremamente avançadas que em um passado distante autodestruíram-se em uma corrida armamentista insana) que questione o status quo e a gestão do poder. Portanto, eles representam um inimigo natural de um estudioso como Martin, que sempre lutou pelo conhecimento.
O clássico de referência para perceber a difusão dos Homens de Preto e os métodos com que perseguem seus objetivos é “Encontros Imediatos” (n.26-27, ). Neste episódio, os Homens de Preto são retratados como os inequívocos vilões da situação e Martin descobre dolorosamente que a organização influenciou irremediavelmente sua vida muito antes dele ter conhecimento de sua existência.
Com o passar dos anos, a representação dos Homens de Preto tornou-se mais ambígua: descobrimos que a organização foi fundada logo após a destruição da Atlântida e Mu pelo guerreiro Adam e pelo mutante Korg, que seus objetivos originais eram nobres (salvar a humanidade de conhecimentos perigosos que poderiam destruí-la novamente) e que com os séculos se corrompeu, se dividindo internamente entre “falcões”, que perseguem seus próprios interesses egoístas de poder oculto, e “pombas”, que permaneceram fiéis aos objetivos originais. O desenvolvimento que se pode ler a respeito é “Martin Mystère: Homem de Preto” (n.235-237, inéditas no Brasil), no qual o BVTM se vê colaborando, mais ou menos voluntariamente e apesar das diferentes visões, com Philip Erikson, homem de preto pertencente às “pombas”, para enfrentar uma ameaça que remonta aos tempos de Adam.
2- Orloff
Sergej Orloff, na juventude colega e grande amigo de Martin Mystère, foi na primeira fase da série a histórica nêmesis do Detetive do Impossível, a quem ele culpava pela sua aparência desfigurada.
O clássico para ler é “A Espada do Rei Arthur” (n.15-16,), uma das aventuras de fantasia arqueológica mais fascinantes e representativas dos primeiros anos da série e que inaugurou diversas linhas de histórias (desde a “arturiana” até a do “nazismo mágico”). Neste episódio, Orloff, em sua segunda aparição oficial, é completamente sem escrúpulos e não hesita em matar as testemunhas de seus planos.
Mais tarde, descobriu-se que aos olhos do mundo, Orloff não é um criminoso, mas o poderoso, amado e intocável empresário à frente do gigante das telecomunicações S.O. Communications (uma evolução que pode lembrar a de Lex Luthor, o inimigo número um do Superman). O desenvolvimento mais surpreendente, no entanto, é o que aconteceu a partir de “Xanadu” (Martin Mystère Gigante #1 Ed Mythos). Se as oportunidades narrativas que a história de dois inimigos mortais que eram amigos antes não foram totalmente exploradas, limitando-se a um punhado de flashbacks nas primeiras edições, com “Xanadu” finalmente descobrimos mais sobre o relacionamento entre Martin e Sergej. No episódio, os dois retornam ao seu mestre espiritual, Kut Humi, onde anos antes a amizade deles começou a rachar (um mosteiro pertencente ao lendário centro espiritual de Agarthi) e onde recebem revelações após as quais eles deixaram de ser inimigos.
3 – Os antigos Dons
Em décadas de histórias de Martin Mystère, vimos uma superlotação de criaturas mitológicas, verdadeiras divindades, civilizações perdidas e visitantes alienígenas que determinaram a evolução do homem.
O episódio clássico para não se perder nesse universo narrativo é “Orlando o Paladino” (n.94-96), seguimento ideal de “A Espada do Rei Arthur”, e uma história que traça as linhas essenciais de referência para o passado misterioso do planeta Terra, desenvolvidas ao longo dos anos. Desde a remota “Idade do Ouro” (uma espécie de “paraíso terrestre”, onde o homem vivia em perfeita harmonia com a natureza, e a ciência e a magia andavam de mãos dadas) aos quatro Dons poderosos dados por visitantes antigos à humanidade (uma Lança, uma Pedra, uma Espada e uma Taça), ao fim da Idade do Ouro causado pelas disputas pela posse dos Dons (cada um deles foi dividido em sete versões menores e menos poderosas, que deram origem a lendas nas principais culturas como Excalibur ou o Graal) até o nascimento de Agarthi e o conflito apocalíptico entre Atlântida e Mu.
Um desenvolvimento desse universo narrativo é em “A Vingança de Loki” (n.244-246, Inédita no Brasil), onde a perversa e caprichosa Morgana (a mesma do Rei Arthur, introduzida nas entrelinhas em “Orlando o Paladino”) inicia uma longa busca, ainda em andamento, para reunir as sete espadas e obter o poder da original, em histórias decididamente exageradas. E como os temas de Martin Mystère tendem a se cruzar frequentemente, em ambos os episódios deste tema também está presente Sergej Orloff, em duas fases muito diferentes de sua vida: na primeira ele ainda é adversário de Martin Mystère, que com um enorme esforço de vontade é forçado pelas circunstâncias a ir à sede da S.O. Communications (Vista pela primeira vez aqui) para obter uma informação vital de seu inimigo, enquanto na segunda o encontramos no pós-Xanadu, não mais um vilão, mas ainda ambíguo e ocupado em lidar com seu passado, embora em histórias que muitas vezes se parecem novelas mexicanas.
4 – Diana
Diana Lombard foi por muito tempo a eterna namorada de Martin. Presente desde a primeira edição, inicialmente foi caracterizada como a companheira extremamente ciumenta do protagonista, quase antipática (embora ela não estivesse totalmente errada, já que inicialmente nosso herói não era totalmente insensível ao charme feminino), mas com o tempo ela se tornou não só a esposa de MM, mas também uma mulher verdadeira e multifacetada, bem como a voz da consciência de seu marido, mostrando que o conhece muito melhor do que ele mesmo.
Não faltaram mal-entendidos e brigas nessas décadas. A primeira tensão séria do casal ocorreu na história clássica “Operação Dorian Gray” (n.62-64), onde o gatilho é determinado pelo egocentrismo de Martin, em crise de identidade devido ao avanço da idade (e pensar que naquela época ele tinha apenas 45 anos), e após uma briga Diana prefere mudar de ares por um tempo, apenas para reaparecer em um dos piores momentos vividos pelo Detetive do Impossível, atingido pela terrível vingança de Mister Jinx. Este último é uma espécie de moderno e empresarial cientista do mal, pronto para conceder os desejos impossíveis de seus clientes, em troca não da alma, mas de (muito) dinheiro. A premissa deste episódio, em particular, é uma das mais brilhantes já vistas nessas páginas e teria consequências também no futuro de Nathan Never, a série de ficção científica da Bonelli, com quem Martin terá um “impossível” encontro no futuro.
O desenvolvimento que reflete o relacionamento entre Martin e Diana em termos maduros e equitativos está contido em “De repente, uma noite” (n.217-218,). Os dois já estão casados há alguns anos, mas para os leitores, por “superstição”, isso só foi revelado em 2002, durante as comemorações do vigésimo aniversário da série. No episódio, tanto Martin quanto Diana estão profundamente perturbados pelo encontro com uma pessoa do sexo oposto, levando-os a questionar a evolução de seus próprios sentimentos. Na história, também é concluída uma antiga ameaça que pairava sobre Diana, originária de seu passado antes de conhecer Martin.
5 – Java
Java, o forte assistente e amigo neandertal de Martin Mystère, nos primeiros anos da série, é principalmente retratado como uma força da natureza, com instintos e sentidos que em certos momentos o aproximam mais do animal do que do homem, mas ainda assim dotado de uma aguda ironia e uma certa desenvoltura com as mulheres.
O clássico que deve ser lido sobre ele é “Java contra Java” (n.111-113, Tex e os Aventureiros Ed. Mythos), que revela o seu passado antes do encontro com Martin em seu lugar de origem, a isolada “Cidade das Sombras Diáfanas” na Mongólia, esclarecendo também as razões que o levaram a seguir o Detetive do Impossível na civilização. A história das dificuldades de integração e da batalha legal para regularizar a situação de Java nos Estados Unidos é particularmente saborosa, e descobrimos que a sua história está intimamente entrelaçada com a de Martin e Diana, tendo o neandertal um papel determinante em juntá-los.
Java, no entanto, não é um personagem fácil de lidar. Com o tempo, ele acabou se tornando muito frequentemente uma espécie de “mordomo” de fundo, sem uma dimensão própria. A exceção ao declínio narrativo, bem como o desenvolvimento mais interessante dos últimos vinte anos, se deve ao ciclo de episódios iniciado com “A Rainha de Sabá” (n.187-189,), onde Java viveu uma intensa e delicada história de amor com Maria Ossowiecki, uma jovem com poderes paranormais e ligada ao homem de Neandertal por uma profunda conexão, que os une invisivelmente mesmo quando estão distantes. Histórias em que Java é retratado com grande ternura e sensibilidade, mas que infelizmente permaneceram como um lampejo isolado na série.
6 – Angie & Cia.
Os especiais de Martin Mystère representaram durante décadas uma espécie de universo “paralelo” de histórias de estrutura repetitiva, com a presença constante da desvairada e sexy Angie, muitas vezes acompanhada pelos sombrios e desajeitados Dee e Kelly, e de “Altrove”, a misteriosa base governamental americana comandada por Chris Tower, um velho amigo de Martin. A “oca divertida” por excelência e seus companheiros rapidamente transformaram os especiais de verão em histórias de tom irônico-cômico, embora com uma evolução ao longo do tempo.
Na clássica história “A Flauta de Mozart” (Especial 8, Inédito no Brasil), o registro é de fato o da comédia brilhante, com um Castelli no seu auge ao combinar uma narrativa fundamentalmente séria com um tom de narração humorística. Aqui, Martin Mystère já é muito diferente do sério arqueólogo dos primeiros anos de publicação e tornou-se, em todos os aspectos, o “Bom Velho Tio Marty”, um pouco caseiro, cheio de neuroses e defeitos muito humanos, como a verborragia que literalmente atordoa os interlocutores ou o estar sempre atrasado na entrega de artigos ao seu editor, com consequências imprevisíveis.
A repetitividade do elenco dos especiais de verão levou a uma verdadeira continuidade dentro deles, com personagens secundários como o desajeitado assistente de Chris Tower (Max Brody) que ao longo do tempo ganharam cada vez mais espaço, enquanto o tom humorístico passou da técnica de narração aos próprios eventos, e a comédia brilhante se aproximou cada vez mais da farsa, muitas vezes levando a resultados questionáveis. Um desenvolvimento ainda agradável está contido em “A Garota no Bolo” (Especial 18, Inédito no Brasil), onde algumas descobertas hilariantes garantem o sorriso e a exasperação dos papéis dos personagens está agora em seu nível mais alto, com eles cada vez mais obcecados pelo “Mistério da Coincidência” ou pela “Coincidência de Altrove” (dependendo do ponto de vista).
(continua)