Em 2022 nosso bom e velho Tio Marty completou 40 anos de vida editorial e mesmo que tardiamente criamos algumas séries de artigos para comemorar essa data especial.
Quando Martin Mystère foi criado, 40 anos atrás, os quadrinhos da Bonelli raramente retratavam o presente, e o western, com Tex liderando as vendas, ainda era o gênero dominante. Zagor (1961) trouxe de volta o western, dando espaço a outros gêneros. “La Storia del West” de Gino D’Antonio (1967) e “Ken Parker” de Giancarlo Berardi com ilustrações de Ivo Milazzo (1974) começaram a ancorar o oeste à realidade. Mas sempre falava-se do passado. Mister No, que desde 1975 Sergio Bonelli situa na década de 1950 em Manhaus, começa a se afastar das referências clássicas.
O presente estava se aproximando, mas para realmente ser retratado em uma edição da Bonelli, teve que esperar, precisamente, pelo detetive do impossível. Nas primeiras páginas da primeira edição de Martin Mystère, vemos carros modernos aventurando-se pelas estradas da Tessália. Mas é apenas algumas páginas depois, com uma visão panorâmica de Manhattan, que a situação se torna clara. E torna-se ainda mais clara na legenda que diz: “Entre a quadragésima e a quinquagésima rua, os arranha-céus enchem a cidade como os espinhos de um gigantesco ouriço”.
Imagens e palavras nos levam a uma viagem para dentro da Big Apple, passando pelas Torres Gêmeas (elas ainda existiam), atravessando Chinatown, mostrando a Universidade de Nova York e parando em Washington Mews, uma rua privada, pouco frequentada. A legenda sempre diz: “As casas que a compõem eram, no século passado, os estábulos das ricas mansões das redondezas”. E pouco depois chegamos exatamente à porta da casa do protagonista, onde há uma placa com seu nome. Agora tudo isso parece normal. Em 1982, foi uma revolução.
Entenderíamos pouco depois que essa decisão de se firmar na realidade (a casa de Martin realmente existe e Castelli deu aos desenhistas a planta com a disposição dos quartos) servia para permitir que ele alçasse voo entre as nuvens dos mistérios. Esta é, de fato, a fórmula vencedora da série.
Ficamos sabendo mais tarde que, após a criação das primeiras edições, houve dúvidas quanto ao nome Martin Mystère, chegando a ser alterado para “Doc Robinson”. Entretanto, surgiu uma revista em quadrinhos intitulada Robinson, fazendo com que decidissem manter o nome inicial. Esse nome, no início, pertencia a um personagem britânico que residia em uma mansão na Campden Hill Road, número 71, em Londres. Castelli, em determinado momento, notou uma semelhança muito grande entre o ambiente londrino e o da série “Gli Aristocratici”, que ele próprio escrevia com ilustrações de Tacconi. Por consequência, decidiram mudar o cenário de Martin para Nova York, o que exigiu o redesenho de várias páginas.
Anteriormente, mencionamos a palavra revolução: a biografia do personagem também foi revolucionária. Apresentada desde o primeiro volume, começa assim: “Martin Jacques Mystère (New York, NY, 26 de junho de 1942). Formado em antropologia pela Harvard University em 1964. Com a morte dos seus pais em um acidente aéreo em 1965, herda uma considerável fortuna que investe em seus estudos.” Um herói que se apresenta com sua data de nascimento era algo inédito. Isso foi uma inovação, assim como o envelhecimento progressivo do personagem à medida que suas aventuras prosseguiam. Porém, essa característica foi adaptada ao longo do tempo. Afinal, se mantivessem essa linha, Martin teria oitenta anos hoje. Seria difícil para alguém com essa idade protagonizar aventuras tão empolgantes. Portanto, Castelli determinou que o fluxo do tempo para o personagem seria mais devagar em comparação ao humano. Quatro anos dele por um dos nossos: problema resolvido.
Para compreender verdadeiramente a essência do personagem, é crucial entender seu criador, que possui o raro dom da onisciência. Ele tem a habilidade de se interessar e aprofundar-se em qualquer campo do conhecimento humano. E também de coletar e catalogar. Não apenas os mistérios de todo o mundo e além, mas também os quadrinhos.
É importante notar que Castelli (juntamente com Gianni Bono) foi um dos primeiros a estudar o mundo dos quadrinhos e desenhos animados japoneses (já em 1983). Depois disso, tornou-se um dos maiores especialistas mundiais na história dos primeiros quadrinhos, nos Estados Unidos e além. Isso também é uma razão pela qual Martin foi imerso em mundos estilizados pelos grandes mestres, como Rodolphe Töpffer (o suíço que primeiro, na primeira metade do século XIX, estabeleceu as regras dessa nova linguagem), Winsor McCay (criador de Little Nemo), Rudolph Dirks (The Katzenjammer Kids, ou Bibì e Bibò) e Alex Raymond (Flash Gordon).
Em suma, um herói com mil vidas e diversos spin-offs, como Zona X (onde Martin frequentemente atuava como apresentador das histórias contadas) e Docteur Mystère, introduzida na edição n. 147, uma série inspirada no personagem literário criado em 1899 pelo escritor francês Paul d’Ivoi. Castelli maravilhosamente transformou este personagem no progenitor da linhagem Mystère.